quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Uma aula virtual, no dia do professor...

Materiais de criação em arte: as ideias não caminham sozinhas
                                                     [Ou, “Pernas pra que te quero”]
Luciana Paludo

 Iniciei o dia do professor instigada, intrigada com uma certa constatação que, cada vez mais, se reformula em meus pensamentos, a respeito do ensino da criação em dança. Hoje é dia 15 de outubro de 2015, dia do professor. Como professora universitária no campo da dança, sendo minha área de concurso a composição coreográfica, nos últimos anos, uma de minhas funções tem sido estar como mediadora de atividades criativas, em diversas situações.
 Então, essa problemática sempre está ativa em meus pensamentos, uma vez que fico engendrando exercícios, modos de falar a respeito de coisas que possam deflagrar processos de criação. Certo, mas, essa é uma das vias desse trabalho; e posso dizer que tem sido uma via atenta, para detectar as demandas que vêm do outro lado dessa história. E, sim, para que possamos trabalhar em colaboração.
Hoje fui derrubada da cama pela inquietação; acordei com algumas frases pululando na mente. Ando encafifada com o processo, ou, com o caminho que temos que percorrer entre a concepção e a realização. Neste semestre especificamente, pelo motivo de ser a professora titular da disciplina Produção Cênica. A produção cênica em dança observa inúmeros elementos e fatores, os quais estarão relacionados entre si, no momento em que nos propomos a compor uma obra em dança: os corpos dos bailarinos, as ideias para deflagrar composições coreográficas, as concepções de cenografia e figurino, a concepção e o desenho de luz, o pensamento e as preocupações a respeito do espaço em que isso será mostrado; a produção para viabilizar um lugar, um dia, para trazer a público tanto empenho; a produção de releases, cartazes e textos de divulgação; os orçamentos e recursos financeiros para viabilizar a produção [o que nos direciona ao campo da gestão]; o diálogo com os técnicos, com a crítica, com os produtores culturais. Enfim, se faz necessário uma atenção constante ao que constitui essa ‘teia da produção’, ou, ainda, essa “cadeia”, sim, porque esses fatores se interligam, operam em tensões diversas e em diálogos.
 Hoje, gostaria de chamar a atenção para a relação concepção X realização. Trocando em miúdos, entre a ideia e o desejo de produzir algo – e que isso ganhe um status cênico – e esse algo se tornar alguma coisa que tenha condições de ser viabilizado para públicos diversos, existe um caminho a ser trilhado. Então, é preciso inventar os mapas, sim; mas, é muito necessário que se visite alguns mapas já feitos por outras pessoas...
 Volto a uma frase do título deste pequeno ensaio: “as ideias não caminham sozinhas”. O que tenho observado em minha vida artística, migra para as lentes que guiam os meus olhos no momento da docência. Sempre apostei no trabalho de corpo, para trazer à tona as minhas ideias e, no meu modo de dar aulas e de instigar a criação em dança, procuro conduzir as coisas nesse sentido [trabalhem gente, todos os dias, a coisa se faz por aí...]. Nesse sentido, do trabalho continuado, há uma presença que se faz a cada dia. Na mesma direção desse raciocínio, o que tenho detectado são espécies de ausências. E essas ausências se dão no seguinte sentido: uma falta de direção, de plano de trabalho, de “invenção” do como trazer à tona a ideia. De persistência e foco.
 Muitas vezes, concepções bem escritas, bem fundamentadas esbarram e tropeçam em corpos que não encontram tempo para refinar as intenções de movimento e fazer com que as ideias tomem a devida forma [e não estamos, todos nós, artistas contemporâneos, sofrendo pela escassez do tempo e dos espaços; das impossibilidades de reunir as pessoas nos mesmos horários para ensaiar – o que dificulta um plano de trabalho?]. Então, vamos supor que arranjemos tempo e espaço para construir um modo de trabalho, no intuito de realizarmos uma produção cênica. Nesse tempo-espaço de trabalho, chamaria a atenção para duas funções: a função direção de cena e a função preparação corporal. E isso tem a ver com a concepção, com aquilo que se quer – com aquilo que motivou o grupo a se reunir, ou, no caso de trabalho individual, a pessoa a organizar seu tempo-espaço para o trabalho. E isso, absolutamente, não significa que tenhamos algo a priori [hoje vou criar a respeito de uma plantação de melancia, por exemplo]. E aqui brinco com algo aparentemente absurdo para assinalar que a ideia pode ser qualquer uma, de qualquer ordem.
 O que nos levará à realização dessa concepção é uma capacidade de metaforizar, de transportar, de imbuir as ideias de células, de respiração, de ossos e músculos... Esse é o ‘material’ da dança. Mas, ele não é estático e esse movimento é um modo de proceder, um pensamento que se redimensiona, a cada dia de trabalho, pelas demandas que surgem, no ato de trabalhar. Quando digo que o corpo é o material da dança, de forma alguma não exponho isso no sentido de reduzir o corpo a um material. Escrevo assim no sentido de provocar e de trazer à tona essa discussão, para que possamos olhar para a qualidade de nossas realizações – e falar sobre isso, de maneira clara, sem rodeios.
 Uma direção cênica eficaz é aquela que trabalha em conjunto com o trabalho de corpo do bailarino [intérprete; intérprete-criador; performer] – escolha a designação que você se sentir pertencido. Ok, vejamos um exemplo: digamos que eu tenha um trabalho a partir da improvisação, que eu não tenha nada em mente a priori. Ora, o simples fato de eu me propor a fazer um trabalho a partir da improvisação já é algo que pode ser considerado um a priori. Não ter um tema específico não significa que estamos a esmo. Ao dançar e criar uma dança, me propondo que essa criação seja a partir de uma improvisação, já espero que meu corpo – pelo menos – esteja numa relação estreita de ‘saber de suas possibilidades’, bem como em diálogo não hierárquico com o espaço; que estejamos a nos construir, a nos influenciar [corpo e espaço] continuamente.
Tendo isso em mente, obviamente, já me imbuo de toda espécie de atenção possível. No meu caso, anos e horas a fio de trabalho diário com a dança, me conectam de uma maneira muito peculiar com o espaço interior-exterior - e [para falar com as palavras de José Gil] - o “espaço limiar”, a “trincheira” da pele se atiça ao responder a todo e qualquer sinal e estímulo. Diria que esse estado de atenção é o que nos possibilita a cuidar os espaços. Então, sinto que é possível partir dali, desse estado de cuidado; e que a atenção, nesse caso, já é uma espécie rara do que podemos considerar ‘auto direção’. Sim, no espaço-tempo da atenção encontra-se uma medida de como estar ali, portanto, de uma qualidade, de um modo especial de fazer cada movimento. E isso, à medida que desenvolvo a minha capacidade de composição / improvisação, também é trabalho de corpo. Quer dizer, no caso da pessoa que cria e dança, essa propriedade eu nominaria de “auto direção”.
 A auto direção, assim, seria uma propriedade de ‘saber-se’; momento de propriocepção operante, latente, vibrante. Dessa maneira, mesmo que se tenha algo a priori [um tema, uma narrativa, um motivo bem específico] para iniciar uma criação - e, também, mesmo que se tenha uma pessoa específica dentro da teia da produção cênica, para trabalhar a direção cênica e o trabalho de corpo dos bailarinos -, o próprio bailarino estará atuando junto, construindo junto; sendo coautor dessa construção corporal-cênica. Para além de qualquer denominação no programa [a respeito de quem é a autoria daquela obra], a qualidade do bailarino ter essa atenção [e realizar uma auto direção] o coloca como construtor de seu próprio corpo, de seu modo de trabalhar; de suas invenções para aproximar a concepção da realização, seja qual for a espécie de trabalho que estiver realizando.
 Ao fim e ao cabo, para quem assiste a uma dança, não importa muito se essa dança foi criada a partir de um tema, os se está sendo criada ali, naquele momento, a partir das propriedades da improvisação. Importa que haja troca, que haja uma respiração possível de se estabelecer em conjunto, entre quem faz e quem vê aquela dança. Importa o modo que aquele corpo maneja o espaço-tempo; a sua afetividade ali. Quem já esteve na cena sabe: a cena nos desnuda, por mais pesadas que possam ser as vestes, por mais ornamental que possa vir a ser a cenografia; por mais rebuscada que seja a iluminação. Quando iniciamos uma dança, temos que chegar até o seu fim. E a palavra fim aqui tem duplo sentido: o de finalidade e o de finalização. Ou seja, dizer sem muitas palavras ‘porque estou ali’ e conseguir chegar até o fim, naquele ato de dança.
Por último, quero instigar neste dia, como professora, aos estados de atenção possíveis. O que escrevo a respeito da dança sai de um corpo que busca estar atento; que vibra, a cada instante; que dança e constrói sua dança; que há, mais ou menos, 30 anos inventa modos de existir a partir de suas ideias, que teimam em virar dança. Com isso, posso dizer que ganhei um bom instrumental [uma parafernália de coisas] para “estar no papel de condutora” de processos de criação. O que espero, como professora? Ora, que essa via seja de mão dupla.
Vou parar por aqui que é chegada a hora de ir ao estúdio fazer aula; me aproximar um pouco de minhas intenções, não apenas de dança, mas, eminentemente, existenciais. Dedico este texto aos meus mestres, os quais me instigaram a prestar atenção na vida.


Lu, 15/10/2015.